setembro 28, 2012

Prantos vãos ...

Oriana está sozinha no cemitério. Nunca lá gostara de estar com mais gente do que a que lá jazia. Sempre dissera que era dos vivos que se tinha que ter temor e não aos mortos.
Senta-se sobre a tumba de sua avó, encarando-a na foto preta e branca e sussurra:
- Estou cansada 'Vó, não dormi... Rezei-Lhe de forma tão irada.
Tira do bolso um papel amarrotado. Estende-o sobre a pedra mármore, deixando assim à vista as letras pelas lágrimas borratadas. Aclara a voz e lê num sussurro sôfrego:
«
Roguei aos céus
E caíste-me no caminho
Anjo Negro
Varreste os campos,
As tuas asas bem abertas, 
na esquerda as 7 pragas, na direita os 7 pecados.
Agora as colheitas são estéreis, secas, ocas, amargas.

Eu, 
estupefacta p'lo rasgo que me fizeste na carne, p'lo pranto que me embutiste nos ossos, 
enfureço-me contra os céus.
Que roguei por um anjo e tu foste demónio desviante,
Anjo Negro, Lúcifer de auréola disfarçado.

As contas do rosário já os meus dedos as sabem de cor.
Correm-nas vexados e amargurados, pois ainda queimam com teu suor.
E, de joelhos rezando, pego em fita de tecido benzido,
Uso-a de espartilho pra me suster as entranhas.
 Esta ferida é chaga amaldiçoada,
Sei bem que só espartilhada, nunca sarada.

Nos campos secos nasceu um cravo,
Eu, de cicatriz fingida com esta fita alegre benzida,
Pego nas alfaias pra semear.
Mas preciso que me guiem, pois já nem na simples enxada sei pegar.
»

Suspira, com se lhe tivessem tirado um fardo dos ombros. Dá uma festa ao retrato.
- Sim 'Vó, sei que o pão amena todas as tristezas. Que o vinho e a música animam até a mais trôpega das almas.
Sorri e troca as velhas flores da jarra por um cravo.

Oriana ...

Borrega

Créditos:
Música: PJ Harvey - The Dancer
Filme: Red Riding Hood
Imagem: daqui

setembro 12, 2012

Childhood Living

Há uns dias fui ao café, beber uma bica, como se diz na minha terra. Tanto a minha avó como a minha mãe, aliás como todos os adultos à minha volta, sempre me fizeram acreditar que o dito café que ia naquela pequena chávena era quase uma cura mística. Quantas e quantas vezes a minha avó me dizia: "Anda, vamos ali ao café, para a avó beber uma bica a ver se arriça.".
Esse costume ficou-me, adoro a minha bica depois de almoço ou jantar, muitas vezes também eu para ver se "arriço". E então, há uns dias, depois de jantar lá fomos nós.
Estavam várias crianças a correr pelo espaço, brincando entretidas, enquanto as mães desfrutavam de dois dedos de conversa e uma chávena milagrosa. Uma das catraias devia ter perto de dois anos, empurrava um carrinho de bebé, proporcional ao seu tamanho, entre a nossa mesa e a das mães, quando de repente se agacha ao meu lado.
Olhei para baixo, para ver se estava tudo bem e nesse momento vejo-a passar o dedinho curioso pelo meu pé, onde a sabrina deixava a descoberto um trecho da frase que tenho tatuada. Levanta o dedinho espantado e volta a passá-lo. De seguida, como que pressentindo os meu olhar, ainda agachada, vira a cabeça pequenina e encara-me curiosa.
Sorri. Ela levantou-se e empurrou o carrinho dali.


Borrega

Créditos:
Música: Rolling Stones - "Wild Horses"
Vocabulário: "arriça", "arriço" - espevitar, ganhar animo.
Imagem: achada algures numa das páginas que sigo no FBook