O homem dirigiu-se ao fundo do quintal. Levava um saco de plástico na mão.
(...)
Acabou de acordar. A noite foi péssima, acordou vezes sem conta.
Põe os cereais a girar no microondas, enquanto diz bom dia aos seus meninos. Recebe quatro bons-dias em forma de caudas a abanar.
Olha então o fundo do quintal, "Como será que está a pré-mamã? Tenho de lhe levar água.", pensa.
Com um estalido sabe que os cereais estão prontos. Apressa-se a comer e acode ao fundo do quintal com um jarro d'água.
- Riona! Rioninha. - chama. - A dona traz água, linda.
Olha-a pelas grades da porta, demora alguns segundos a encaixar a imagem. já não há uma grande barriga, a cadela está, de novo, magra.
- Oh minha linda! - exclama, enquanto procura os cachorrinhos com os olhos.
Lá estão! Ao canto, numa pequena covinha, maternalmente cavada.
Entra, saúda a mamã, linda no pós-parto.
Despeja a água no recipiente e acorre aos pequenos.
- Posso? A dona só quer ver quantos cães e quantas cadelas. - pede-lhe.
Meiga e confiante, ela deixa-a pegar os seus pequenos.
- Cinco cães e uma cadela. São lindos pequena, lindos. - afaga-a no focinho.
As lágrimas caem-lhe pela face redonda.
- Desculpa. - pede-lhe por entre afagos. - Vão todos ver se sabem nadar. Desculpa, não podemos ficar com eles.
Riona, pobre inconsciente, não lhe percebe a triste expressão e, alegre, deixa os afagos, indo aninhar-se na cova, ajeitando os pequenos para perto das tetas. Dá-lhes de mamar.
"Como fica linda!", volta a pensar.
Corre até à cozinha, pega no telefone, liga ao pai.
- Ela já pariu.
Do outro lado da linha soa pesada a voz.
- Eu sei, vi de manhã.
- São seis, cinco cães e uma cadela.
- Cinco cães e uma cadela?
- Sim.
E a imagem dos pequenos crava um pouco mais na sua mente.
- Eu não os consigo matar! - diz sôfrega.
Abatido, responde:
- Tenho eu de fazer isso?
- Só tens dos por num saco, a mãe mata-os.
- O pai trata disso mal chegue.
Despedem-se, desliga.
Passado algum tempo, a mãe liga.
- Que vais fazer hoje à tarde?
- Arrumar a roupa, lavar a loiça e ir aos correios.
- Não podes por os cachorros dentro dum saco? - pede.
- Não! Eu não vou fazer isso!
- Tenho de ser eu a fazer tudo?!?! - atira cansada.
- O pai disse que fazia, já falei com ele. Eu não faço isso!!!
Desliga meio chateada, mas ela não quer saber. Não vai ser ela a levá-los para a morte.
(...)
O homem dirigiu-se ao fundo do quintal. Levava um saco de plástico na mão.
O homem vai fazer algo que detesta: armar-se em Deus, como o próprio diz.
O homem abre a porta, olha a pequena como quem pede desculpa, mal olha os pequenos rebentos, ensaca-os.
Acelera em direcção à mulher, tenta ignorar os pequenos gemidos e os sofridos latidos de Riona.
Entrega-lhe o saco, à mulher, ela que os mate, que os afogue, que ele só do que fez já não vai dormir.
E a mulher, forte como tem der ser, a vida assim a talhou, lá os afogou...
A filha, essa, a sentir-lhes o sangue nas mãos, triste, acudiu a pequena cadela. Encheu-a de afagos, pediu-lhe, de novo, desculpa. Prometeu-lhe não voltar a acontecer.
E, do alto do seu afecto irracional, a pequena cadela aos afagos cedeu.
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Créditos:
Música: Papa Roach - "Getting away with murder"