fevereiro 11, 2009

Azul vs. Negro

Alerta: Texto demasiado comprido

Ouço, ao longe, o som do chuveiro, a água a correr, o vapor desta, quase fervente, rodeia e envolve o meu corpo desnudo, que está há muito esquecido debaixo dela. Aterro... Volto a ouvir e a ver tudo nítido, a minha alma retorna também, e, com um suspiro, percebo que por mais tempo que ali esteja debaixo, por mais quente que a água esteja, ela não me vai conseguir lavar a mágoa que me mancha o peito ou a amargura que me azeda a vida.
Lembro-me dele... Dá-me um calafrio... Fecho a torneira, espremo o cabelo, seco-me e penteio-me. Já no quarto, visto o meu pijama e, com o incenso já queimando, deito-me na minha cama. As imagens passam como um flash na minha cabeça. Sei que vou ter saudades do toque e do timbre grave da sua voz, de como me sinto com ele por perto, de como me perco no azul calmo e terno dos seus olhos. Abro os olhos por um instante e com eles busco a garrafa de água. Por sorte está ao meu alcance, porque estou tão mole e pachorrenta que, e apesar de estar sequiosa por um gole de água, não me levantaria para ir buscá-la. Pego-lhe, bebo e volto ao meu transe meditacional.
Volto a todas aquelas imagens, pedaços dos momentos que tive e que me deixam a face carmim e o peito rubro. Mas, do nada, surge um fundo negro e nele se desenha, letra a letra, a palavra: Efemeridade. Aproximo-me dele a passos largos, que ecoam pelo corredor mental de imagens onde estou, e reconheço-o então como sendo um quadro de ardósia.
Ele mostra, apesar da sua simplicidade, muitas coisas sobre mim. O mundo, há muito que o descobri, não é um conto de fadas e muito menos cor de rosa. Ele é preto e branco, tal qual a palavra alva no sombrio quadro de ardósia. Aquela alva palavra que tanto me atemoriza e me atormenta os pensamentos. Tudo é efémero, a felicidade, a tristeza, a saúde, a inspiração, as pessoas. O pior é quando estas pessoas são as que amamos, aquelas que temos como certas até à eternidade e que são o nosso amparo para não sucumbirmos às tentações cobardes dos momentos taciturnos e perniciosos.
Naquele quadro negro está reflectido o medo que tenho de ficar só, de acabar tão azeda como um limão verde, de não ter coragem suficiente para amar e me entregar de corpo e alma a alguém e sobretudo o medo que tenho dela, da mulher de negro. Não quero que ela me leve quem amo, nem que me leve antes de eu ter quebrado os meus medos e vivido realmente.
“Tudo é efémero e se há-de findar mais tarde ou mais cedo.” – diz uma tenebrosa e pútrida voz. Sem mais nem menos, vejo brotar da ardósia um vulto negro que estende a sua mão em direcção a mim, enquanto repete arrastadamente e sem parar aquela frase. Começo a correr de novo pelo corredor, desta vez, para além dos meus passos, ecoa também o som de correntes a arrastar. Olho sobre o ombro, ela aproxima-se, é ágil, veloz e tão ligeira. Como o conseguirá com todas aquelas correntes? Não é altura para curiosidades, penso, está quase a apoderar-se de mim... Tropeço, caio... Ela está em cima de mim... Sinto-me desvanecer, ela quer tirar-me a alma. Não o posso permitir, começo a espernear incessantemente, atingindo--a de todas as formas que posso, mas parece não a magoar nem um pouco.
Abro os olhos de rompante, ela já não está debruçada sobre mim. Está escuro e estou suada e trémula, mas a salvo no meu quarto. Palpo a mesa-de-cabeceira procurando pelo telemóvel. Finalmente acende-se a pequena luz do visor, são 5 da manhã. Respiro fundo e recomponho-me, tudo não passou de um pesadelo, de um devaneio da minha alma inquieta. Vou à casa de banho lavo a cara e bebo um pouco de água. Regresso ao meu leito, o incenso há muito que se consumiu mas o seu cheiro apaziguador continua a impregnar o quarto. Aconchego-me, sei que agora será difícil adormecer outra vez. Embora as minhas pálpebras estejam deveras cansadas tenho medo de voltar a fechar os olhos. Mas acabo por ceder ao seu gritante e sôfrego apelo, fechando-as. Revejo aqueles olhos doces, tão azuis. Faltam apenas algumas horas para os voltar a ver... E é aninhando-me neles que enfim me deixo dormir.


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